O Lucro da Negação: Quando o Sucesso do Negócio Depende de Não Entregar o que Foi Vendido
Imagine pagar por um produto ou serviço e só depois descobrir que o modelo de negócio da empresa foi construído para não entregar o que você comprou. Parece absurdo? Pois esse é o caso de muitos setores essenciais — e ainda assim, esses modelos seguem legalizados, incentivados e até celebrados no mundo dos negócios.
Estamos cercados por empresas que lucram mais quanto menos entregam. O paradoxo é perverso: elas só sobrevivem financeiramente se o cliente não receber o que foi prometido. E quanto mais eficazes forem em negar, cortar ou adiar a entrega, maior o retorno para seus acionistas. Essa é a lógica oculta por trás de modelos de negócio que deveriam ser inaceitáveis — e, talvez, até proibidos.
O plano de saúde que só lucra se você não usar
Comecemos por um dos exemplos mais cruéis: os planos de saúde. Na teoria, contratamos um plano para garantir atendimento médico, exames, tratamentos, internações — o que for necessário, no momento em que for necessário. Mas na prática, o plano só é lucrativo se a maior parte dos usuários não usar os serviços ou tiver seus atendimentos negados ou adiados.Isso cria um incentivo perverso: a empresa só prospera se conseguir evitar o uso daquilo que ela vendeu. Quando um paciente solicita um exame ou uma cirurgia e encontra barreiras burocráticas, exigências incoerentes ou prazos que beiram o risco de vida, não estamos apenas diante de um mau atendimento — estamos testemunhando o funcionamento normal de um modelo de negócio que faz do não atendimento sua estratégia de sobrevivência.
O que deveria ser um direito vira uma corrida de obstáculos. E o lucro, ao invés de vir da boa prestação do serviço, vem da negação sistemática dele.
Ônibus lotado, lucro garantido.
Outro exemplo vem do transporte coletivo. Imagine uma cidade onde as linhas de ônibus são mal distribuídas, os veículos passam lotados e os horários são espaçados. Situação comum, certo? Agora considere o seguinte: uma empresa de transporte coletivo pode ser lucrativa justamente porque opera com frota menor do que a demanda exige. Com menos veículos, há menos gastos com combustível, manutenção, motoristas. Quanto mais passageiros são comprimidos em menos ônibus, maior a margem de lucro. O desconforto do usuário, nesse caso, não é uma falha do sistema — é o coração do modelo de negócio.
O passageiro que não consegue embarcar, ou que faz a viagem apertado, em pé por uma hora, é parte da equação de rentabilidade. A qualidade do serviço é vista como custo, não como missão. De novo, a lógica se repete: lucro pelo não atendimento.Bancos, operadoras, seguradoras...
A lógica da negação também aparece nos bancos, que oferecem empréstimos com juros abusivos e escondem informações essenciais nos contratos. Ou nas operadoras de telefonia que dificultam cancelamentos e resolução de problemas. Ou nas seguradoras que só aceitam riscos mínimos e complicam qualquer sinistro.Essas empresas apostam no desgaste do consumidor. Sabem que, diante da dificuldade de conseguir o que é justo, muitos vão desistir, engolir o prejuízo ou simplesmente aceitar condições desvantajosas. O modelo é eficaz porque conta com a passividade ou exaustão do cliente como parte do plano de negócios.
Quando negar é mais lucrativo do que cumprir
Esse tipo de modelo de negócio tem um nome, ainda que raramente dito em voz alta: modelo baseado na falha (failure-based model). Ele é estruturado para funcionar melhor quando o serviço não é plenamente entregue. E, por mais surpreendente que pareça, essa distorção é legal — e, em muitos casos, incentivada pelo próprio Estado.
No Brasil, por exemplo, operadoras de saúde suplementar são autorizadas a funcionar mesmo com índices altíssimos de reclamações e negativa de coberturas. As agências reguladoras nem sempre têm poder ou interesse para coibir essas práticas. E enquanto isso, vidas estão em risco.Na economia, esse tipo de distorção é um exemplo clássico de falha de mercado. Quando o interesse privado está em conflito direto com o interesse público — e, pior, quando o lucro depende do prejuízo do cliente — há algo fundamentalmente errado.
E se fosse proibido?
O ponto central é simples: negócios cujo modelo de lucro depende estruturalmente de não entregar o que vendem deveriam ser proibidos. Não se trata de impedir empresas de existirem, mas de definir limites éticos e legais. Se um plano de saúde só é rentável ao negar tratamentos, então ele não deveria existir nesse formato. Se um sistema de transporte coletivo só dá lucro ao operar com menos ônibus do que a cidade precisa, ele não está servindo à população — está explorando-a.
Assim como existem normas contra propaganda enganosa, concorrência desleal ou trabalho análogo à escravidão, devem existir mecanismos contra modelos de negócio que lucram pelo não cumprimento de sua função básica.
Essa não é uma ideia radical — é uma exigência mínima de coerência econômica e justiça social.
Alternativas são possíveis
Existem caminhos diferentes. Um plano de saúde pode ser organizado em formato sem fins lucrativos, como ocorre em alguns países europeus, ou regulado de forma rigorosa, como no Canadá. O transporte público pode ser subsidiado pelo Estado com metas claras de qualidade, e não terceirizado para empresas que priorizam o retorno financeiro.
Modelos cooperativos, comunitários ou públicos ainda são exceção, mas mostram que é possível fazer diferente. E cada vez mais consumidores, eleitores e cidadãos estão percebendo que a lógica da eficiência privada tem limites — especialmente quando atinge a dignidade das pessoas.
Conclusão: precisamos discutir esse problema real e urgente
Talvez a primeira tarefa seja nomear o problema. O que hoje é visto como “má prestação de serviço”, “ineficiência” ou “burocracia” é, muitas vezes, parte deliberada de um sistema que funciona assim por escolha — e que é lucrativo justamente por isso.
Precisamos romper o silêncio em torno desses modelos. Exigir transparência, regulação, alternativas. E, sobretudo, começar a discutir com seriedade: por que permitimos negócios que dependem de negar direitos para existir?
Em tempos de crise econômica, colapso climático e desigualdades gritantes, talvez o mínimo que devêssemos esperar é que ninguém ganhe dinheiro com o sofrimento alheio — e que os serviços que compramos nos sejam, de fato, entregues.